Direito da Moda: a necessidade de uma nova postura frente a esta indústria

A indústria da moda possui importância socioeconômica para diversos países, tornando-se cada vez mais representativa globalmente. Além de movimentar expressivos valores e abarcar diversos segmentos, tais como os setores têxtil, calçadista, de acessórios, de luxo, de joias, cosméticos, beleza e outros, a indústria da moda gera milhões de empregos.

A Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecções (Abit) aponta que o setor têxtil é o segundo maior empregador da indústria de transformação, ficando atrás apenas da indústria de alimentos e bebidas. A cada ano esse mercado tem sido responsável pelo aumento do Produto Interno Bruto brasileiro e fez o Brasil alcançar o ranking do sexto maior produtor têxtil do mundo, representando 3,5% do PIB total brasileiro [1].

Outro fato importante que fomenta o crescimento e a integração vertical dessa indústria foi a liberação do comércio internacional de têxteis e de vestuário, que contribuiu para o desenvolvimento de novos modelos de negócio, como por exemplo, o e-commerce, que a cada dia está mais presente na jornada do consumidor.

Um dado interessante é que o Brasil é um dos poucos países que possuem uma cadeia têxtil completa e complexa. Ou seja, além de produzirmos fibras naturais (como algodão, linho, lã e seda) e químicas (tais como viscose, modal, elastano e poliéster), também realizamos a confecção do vestuário, passando pelo processo de fiação, tecelagem, malharia e beneficiamento, até chegar aos consumidores por meio das vendas, seja no varejo, e-commerce etc.

Oportuno dizer que o Brasil responde por 2,4% da produção mundial de têxteis e por 2,6% da produção mundial de vestuário. Os dados conferem ao Brasil o posto de único país da América do Sul com destaque no setor têxtil [2]. Ainda de acordo com os dados gerais do setor, o faturamento da cadeia têxtil e de confecção em 2018 foi de US$ 48,3 bilhões, e a produção média de têxtil foi de 1,2 milhão de toneladas [3].

Além disso, o país é o quarto maior produtor de malhas e denim do mundo, sendo igualmente referência mundial em design de beachwear, jeanswear e homewear, tendo crescido também nos segmentos de fitness e lingerie [4].

Todavia, se de um lado há motivos para comemorar, em razão da representatividade e da beleza desse mercado, de outro pode-se dizer que é uma indústria com muitas filigranas, que cresce por meio da informalidade e, portanto, além da imagem de glamour, possui um lado bastante obscuro, exigindo, assim, um olhar atento e arguto tanto do empresário que está à frente do negócio como também do advogado, que deve estar preparado para descortinar as diversas e complexas questões jurídicas que envolvem o setor.

A relação entre Direito e moda deu seus primeiros sinais no ano de 2000, na França e na Itália [5]. Entretanto, a discussão inicial sobre a necessidade de um olhar mais aguçado e crítico por parte da comunidade jurídica para o universo da moda teve início nos Estados Unidos, com a professora Susan Scafidi. Sua primeira iniciativa relacionada ao universo da moda e do direito foi em 2005 com a criação do blog denominado Counterfeit Chic [6]. Posteriormente, com o propósito de estudar e debater as questões que envolviam essa indústria e, sobretudo com a intenção de alterar a legislação estadunidense de forma a conferir proteção às criações de moda, visto que naquele país os designs têxteis e de vestuário são considerados utilitários e, como tal, não são passíveis de proteção nem pelo copyright, nem pelo regime de proteção industrial, a professora norte-americana, além de criar uma disciplina na Fordham University (NY) denominando-a Fashion Law, ou Direito da Moda, fundou o Fashion Law Institute [7], organização sem fins lucrativos com sede na Fordham University, primeiro centro do mundo dedicado ao direito e aos negócios da moda.

Atualmente, diversos países e instituições de ensino se dedicam a apoiar e obter os melhores resultados para as empresas desse setor, com o fim de tratar questões sensíveis a essa indústria. No Brasil, os primeiros estudos sobre direito e moda tiveram início entre os anos de 2011 e 2012. Em 2012, foi fundado o primeiro Instituto Brasileiro de Negócios e Direito da Moda — Fashion Business and Law [8] (FBLI). Anos mais tarde, em 2017, foi criada a primeira pós-graduação brasileira em Fashion Law, na Faculdade Santa Marcelina, sendo reconhecida internacionalmente como uma das melhores faculdades dedicadas ao ensino da moda. Nesse sentido, ressalta-se que diversas subseções da Ordem dos Advogados do Brasil criaram comissões de estudo para discutir o tema. Em 2019, o renomado Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) criou uma comissão de estudos de Fashion Law com o objetivo de promover cursos, seminários e pareceres envolvendo questões jurídicas do segmento.

O Brasil, a exemplo das demais legislações mundiais, não possui uma lei específica que trate exclusivamente sobre o Direito da Moda. Aliás, nesse ponto, há muitas questões que circundam o tema. Indaga-se, por exemplo, se o Fashion Law deveria ser uma disciplina autônoma do direito, em razão, dentre outros, da complexidade e pujança econômica do setor.

Todavia, ainda que o Direito brasileiro não ostente proteção expressa na Lei de Propriedade Industrial para os artefatos provenientes da moda, como é o caso da França, que estabelece em seu Código de Propriedade Intelectual proteção para as criações da moda, é possível a proteção de tais bens pelo sistema jurídico brasileiro, conforme segue abaixo.

Desse modo, o empresário que deseja investir no país, consoante a análise do objeto que pretende proteger, poderá se valer da Lei nº 9.610 de 1998, que disciplina os direitos autorais e conexos, e/ou da Lei nº 9.279 de 1996, que regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.

Ainda, para ter exclusividade sobre o sinal distintivo que identifica um serviço ou produto, é recomendado ao empresário o registro a fim de gozar de proteção legal. Para proteger a marca de sua empresa de moda no Brasil, o empresário, por intermédio da Lei de Propriedade Industrial, deverá depositá-la no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), que é um instituto semelhante ao Escritório de Marcas e Patentes dos EUA (USPTO).

Com o passar do tempo, além da necessidade de conferir proteção às criações dos designers, verificou-se a necessidade de o Direito dedicar atenção a outros problemas decorrentes dessa indústria: problemas ambientais, tais como o descarte incorreto de resíduos têxteis; problemas trabalhistas frente à exploração das relações laborais, havendo casos até mesmo de submissão a escravidão; questões tributárias, haja vista a alta incidência de carga tributária; problemas penais decorrentes da prática de plágio e contrafação, dentre outros crimes; questões contratuais, em consequência da pluralidade de instrumentos contratuais envolvidos e portanto a necessidade de análise de todo o conjunto contratual; além de questões consumeristas e de propaganda e marketing, dentre outras.

Assim, podemos dizer que o Direito da Moda é inter e multidisciplinar, o que significa dizer que o Direito da Moda “flerta” e acaba por envolver os mais diversos ramos jurídicos do Direito: propriedade intelectual, societário, internacional, trabalhista, tributário, ambiental, criminal, digital, concorrencial e contratual.

No que tange especificamente ao Direito contratual, os contratos entram como um elemento importante no segmento da moda, pois, como foi dito acima, num mercado cercado pela informalidade e muitas vezes sem um plano de negócio claro e objetivo, um contrato bem redigido e em harmonia com os outros contratos dentro de um mesmo negócio, é instrumento eficaz para mitigar riscos e evitar conflitos futuros, muitas vezes decorrentes de uma relação comercial malconduzida.

Temos uma gama de contratos já existentes, e outros que se desenham a cada dia, guiados por novas relações que surgem nessa dinâmica indústria. Desse modo, exemplificativamente, ressaltam-se os seguintes contratos: I) entre os de prestação de serviços, citamos: a) contratos de Personal Stylist; b) de consultoria de moda; c) com designers; d) com digital influencers; e) com modelos; e f) com fotógrafos; II) contratos de fabricação por encomenda; III) contratos de facção; IV) contratos de intermediação e representação; V) contratos de patrocínio; VI) termos de confidencialidade; VII) contratos de licença de uso de imagem; VIII) contratos de importação e exportação de mercadorias; IX) contratos de fusões e aquisições; X) contratos de locação de espaço para eventos, tais como desfiles; XI) contratos de aluguel em shopping centers; XII) contratos de transferência de tecnologia; XIII) contratos de licença e cessão de marcas, patentes e desenho industrial; XIV) contratos de franquia etc.

Cada um desses tipos contratuais possui suas especificidades, porém, no geral, os principais itens que devem ser observados quando da elaboração de uma minuta na área da moda são: a) partes; b) considerandos; c) objeto; d) obrigações das partes; e) remuneração; f) territorialidade, exclusividade e preferência; g) propriedade intelectual; h) penalidades pelo descumprimento ou pelo cumprimento de forma diversa da pactuada; i) formas de extinção e causas de rescisão contratual; j) confidencialidade; k) anticorrupção — compliance; l) responsabilidade social (aplicação de normas que estejam de acordo com sustentabilidade, contra o trabalho escravo etc.); m) cláusulas de proteção, como por exemplo, a de hardship — quando o contrato for internacional; e n) forma de solução de conflitos — eleição de foro judicial ou câmara arbitral.

Tanto o rol dos contratos citados acima, quanto o das cláusulas mencionadas, não são taxativos. Cada negociação deve ser muito bem pensada e planejada, e fazer uso dos instrumentos adequados, com cláusulas bem redigidas e inter-relacionadas, de maneira a contemplar todas as peculiaridades e necessidades do negócio, traduzindo de maneira fiel a real intenção das partes contratantes.

Nota-se, portanto, ser essencial, tanto ao empresário quanto ao operador do direito que estejam à frente dessa indústria, conhecerem bem as demandas e a realidade das empresas de moda, de sorte que possam traçar a melhor estratégia a fim de preservar a reputação das marcas e mitigar os problemas, riscos e as contingências que despontam nesse mercado.

Por fim, em razão do olhar cada vez mais atento e exigente dos consumidores, preocupados com questões éticas, ambientais, morais e de transparência, há necessidade de uma nova postura frente a essa indústria. Vislumbram-se novos modelos e oportunidades de negócio, com a necessidade de um trabalho jurídico multidisciplinar.

Artigo publicado originalmente no Guia Doing Business da SWISSCAM.

[1] FONSECA, Ana Flávia da. Por que o mercado de design de moda é promissor no Brasil? UNIPE – Centro Universitário de João Pessoa, 09 set. 2015. Disponível em: . Acesso em: 8/11/2017.

[2] FEBRATEX. Cadeia têxtil: entenda as oportunidades deste segmento de acordo com a Abit. Disponível em: . Acesso em: 9/11/2019.

[3] Dados gerais do setor referentes a 2018 – atualizados em dezembro de 2019. Disponível em: . Acesso em: 26/6/2020.

[4] Idem.

[5] SOUZA, Regina Cirino Alves Ferreira de. Aspectos Jurídicos do Fashion Law. Jornal Carta Forense, 02 mai. 2018. Disponível em: . Acesso em: 26/6/2020.

[6] http://intro.counterfeitchic.com/.

[7] https://fashionlawinstitute.com/about.

[8] https://www.linkedin.com/company/fashion-business-and-law-institute

Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-ago-24/daniela-favaretto-direito-moda

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